Era verão em Ushuaia, cidade da Argentina que se orgulha de carregar o título de “fim do mundo”. Turistas de várias partes do planeta desembarcavam em massa, acompanhando o movimento dos pinguins que cruzam milhares de quilômetros em busca das águas geladas da região.
Em uma tarde de final de janeiro, cinco enormes navios de cruzeiro lotavam as docas em Ushuaia esperando para levar passageiros de alto poder aquisitivo que pagaram entre US$ 15 mil (R$ 85 mil) e US$ 18 mil (R$ 102 mil), em média, por viagens únicas de dez dias à Antártida.
Há dez anos, cerca de 35 mil passageiros partiram de Ushuaia rumo ao continente gelado; no ano passado, foram 111,5 mil. A autoridade portuária prevê alta de 10% nesta temporada. Muitos turistas passam uma ou duas noites na cidade, preferindo Airbnbs aos hotéis mais simples.
A explosão do turismo está trazendo prosperidade para os 83 mil residentes de Ushuaia, espremida entre os Andes e o canal de Beagle. Mas também está sobrecarregando os recursos, aumentando o custo de vida e contribuindo para a escassez de moradias para trabalhadores. O isolamento, o maior atrativo da região, só torna a pressão pior.
“Vendemos uma aura”, disse Julio Lovece, presidente da Fundação Ushuaia 21, que defende o desenvolvimento do turismo que beneficie a comunidade local. “Diferentemente de outros lugares que talvez vendam cachoeiras, ou baleias, ou geleiras, nós vendemos o fim do mundo.”
Lá Fora
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A cidade de Ushuaia, localizada no extremo sul do planeta, é o principal ponto de partida para a Antártida. Embora cruzeiros também partam do Chile, da Austrália e da Nova Zelândia, a proximidade de Ushuaia —a cerca de 965 quilômetros da ponta da península Antártica, na ilha da Terra do Fogo— explica por que ela concentra 90% das viagens rumo ao continente gelado.
O desejo de ver paisagens intocadas, animais incomuns e vastas quantidades de gelo em uma era de aquecimento global atrai turistas para os cruzeiros. Gabriel Chocron, cofundador da agência local Freestyle Adventure Travel, descreveu a visita à Antártida como “o mais próximo que você pode chegar de visitar outro planeta”.
Ushuaia conta com cerca de 6.200 leitos para turistas, divididos principalmente entre hotéis e aluguéis temporários. As acomodações são em geral rústicas, mas há opções econômicas, como um hotel no estilo cápsula japonesa, e três resorts cinco estrelas localizados fora do centro.
Visando capturar uma parte desse mercado de alto padrão, a rede Meliá Hotels anunciou no final do ano passado que construiria um resort de luxo de US$ 50 milhões (cerca de R$ 280 milhões) em Ushuaia, com spa, piscinas internas e externas e um auditório com capacidade para 800 pessoas.
A atual falta de opções de alto padrão, segundo autoridades locais de turismo, dificulta seus esforços para persuadir os passageiros de cruzeiros a permanecerem e explorarem a região.
Passageiros que pagam até US$ 18 mil por cruzeiros antárticos se deparam com a dura realidade de trabalhadores locais, como Nolly Ramos León, mãe solo que vive com seus quatro filhos em um barraco sem eletricidade ou saneamento, em uma encosta com vista para o porto de Ushuaia.
Para chegar ao trabalho como camareira em um hotel, onde ganha cerca de US$ 500 por mês (R$ 2.800), ela desce escadas e caminhos de terra que se tornam perigosos no inverno.
Segundo Nolly, os moradores de Ushuaia que construíram na encosta da montanha o fizeram “para tentar viver com dignidade”. Pelo menos 10% deles vivem nesses tipos de assentamentos improvisados, com acesso escasso aos serviços públicos. “Demoramos muito tempo para construir esta casa”, disse ela. “Às vezes nem tínhamos dinheiro para comer, porque eu estava investindo nesta casa.”
A população de Ushuaia cresceu 45% desde 2010, mas a cidade enfrenta dificuldades para abrigar os recém-chegados, devido à falta de espaço e ao alto custo de construção em seu terreno remoto.
Em Ushuaia, os inquilinos gastam cerca de 80% da renda com moradia, pagando em média 900 mil pesos (cerca de R$ 5.600) por um apartamento de dois quartos. A cidade enfrenta dificuldades para equilibrar turismo e habitação, e propostas de expansão geram preocupação com o impacto ambiental, segundo profissionais do setor.
Em comunicado, a Associação Internacional de Operadores de Turismo da Antártida disse que a maioria dos turistas de cruzeiro opta por hotéis em Ushuaia, não por aluguéis privados, e reafirmou seu compromisso em promover um equilíbrio sustentável entre turismo e bem-estar comunitário na região.
As férias na Antártida geram cerca de 5 toneladas de CO2 por viajante, equivalente à poluição anual de uma pessoa média, e 16 toneladas para um americano. A região aquece mais rapidamente que o resto do mundo, impactando a paisagem; um verão quente causou o desabamento de uma formação de gelo e rocha no Parque Nacional Terra do Fogo.
A Associação de Operadores da Antártida defende que cruzeiros promovem conscientização ambiental, mas ativistas pedem limites ao turismo no continente.
Ativistas que vivem em Ushuaia também se preocupam com o futuro, já que moradias estão se tornando mais difíceis de pagar. “Chegará um momento em que só turistas estarão em Ushuaia”, disse Maria Elena Caire, presidente do Que Nos Escuchen. “Quem vai atendê-los? Porque os moradores não conseguem encontrar um lugar para morar.”