Elioni Gonçalves acordou com um pressentimento ruim. Seu primeiro pensamento foi sobre sua filha de 2 anos, Manu.
Manu é americana. Nasceu como Emanuelly Borges Santos em um hospital de Fort Lauderdale, em setembro de 2022. Mas, em fevereiro, foi detida nos Estados Unidos junto com sua mãe e seu pai —ambos em situação migratória irregular— e colocada em um voo de deportação para o Brasil, onde a família mergulhou em um labirinto burocrático.
Manu, que não é cidadã nem residente do Brasil, foi forçada a entrar no país como turista. Nos meses tensos desde então, enquanto as autoridades tentavam descobrir como regularizar sua situação, a menina ficou praticamente apátrida —retirada de seu país de nascimento e ainda não acolhida juridicamente pelo país de origem dos pais. Ela não tem direito a consultas pediátricas de rotina no sistema público de saúde do Brasil. Não pode se matricular facilmente em uma escola ou creche brasileira. E vive com um visto de turismo temporário, prestes a expirar.
Tudo isso passava pela cabeça da mãe, contou ela, ao se levantar em uma manhã recente. “E se a gente precisar levá-la ao médico?”, perguntou-se Gonçalves.
Com o endurecimento da repressão migratória pelo governo de Donald Trump —que planeja deportar 1 milhão de imigrantes irregulares até o fim do ano—, mesmo cidadãos americanos estão sendo apanhados. Essa remoção tem causado alarme entre juízes e juristas, que acusam o governo de violar o devido processo legal. O caso também ilustra o quanto é comum nos EUA haver famílias com status migratórios mistos. Um estudo de 2020 do Instituto de Políticas Migratórias mostrou que 4,4 milhões de crianças americanas tinham pelo menos um dos pais em situação irregular.
O governo Trump também tentou proibir o direito à cidadania por nascimento —que garante cidadania americana a todos os nascidos no país, independentemente da situação migratória dos pais. A tentativa foi barrada por tribunais federais e está sob análise pela Suprema Corte.
Lá Fora
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No mês passado, ao menos três crianças americanas foram enviadas para Honduras junto com suas mães em situação irregular. Uma delas, também de 2 anos, foi deportada contra a vontade do pai, segundo documentos judiciais.
A remoção dessa criança provocou uma dura reprimenda do juiz federal Terry A. Doughty, do Distrito Oeste da Louisiana. Ele classificou como “ilegal e inconstitucional deportar” cidadãos dos EUA.
Os detalhes da deportação de Manu, ocorrida em 21 de fevereiro, não haviam sido divulgados anteriormente. O ICE (Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA) e o Departamento de Segurança Interna (DHS) não comentaram especificamente o caso dela.
Em comunicados separados, ambos os órgãos disseram que, em situações como essa, “os pais são questionados se desejam ser removidos com os filhos, ou o ICE colocará as crianças sob os cuidados de alguém designado pelos pais”.
Tricia McLaughlin, secretária assistente do DHS, afirmou que era “falso e irresponsável” sugerir que o governo havia deportado cidadãos americanos.
Gonçalves, 41, e seu marido, Edivan Borges dos Santos, 42, insistem que não tiveram escolha. Provavelmente teriam decidido permanecer juntos, disse Gonçalves. Mas ela declarou que tem um irmão em Pompano Beach, na Flórida. Talvez Manu pudesse ter ficado com ele.
“Eles simplesmente nos deportaram ” disse Borges.
Quando a família chegou a Fortaleza, em um voo com 94 deportados, as autoridades locais disseram ter ficado surpresas ao encontrar a pequena Manu na lista. Os únicos documentos dela eram um passaporte americano e um cartão da seguridade social dos EUA. “Nunca vimos um caso como esse” disse a agente da Polícia Federal Alexsandra Oliveira Medeiros Reis.
Uma menina americana
A família é oriunda do leste de Minas Gerais, estado conhecido nacionalmente como polo de migração irregular para os EUA. No centro de Governador Valadares há a Praça do Emigrante, com uma estátua de um viajante usando boné americano.
Borges e Gonçalves disseram que nunca pensaram em partir até a pandemia de coronavírus. Quase tudo fechou. Ficou mais difícil conseguir trabalho. Eles viviam com o filho em uma casa inacabada ao lado dos pais de Gonçalves, sem recursos para concluir a obra.
Gonçalves estava relutante, mas tinha um irmão que já havia feito a travessia. Depois de muitas conversas, a família voou em 2021 para o México e seguiu até a fronteira do Arizona, onde se entregaram ao ICE.
Com o argumento de violência e corrupção no Brasil, Borges afirmou que a família pediu asilo e recebeu permissão para permanecer nos EUA enquanto o processo era analisado. Foram para Pompano Beach para se reunir com o irmão de Gonçalves. Borges começou a trabalhar na construção civil, onde ganhava quase dez vezes mais do que no Brasil. Pouco depois, Gonçalves engravidou da segunda filha.
Após o nascimento de Manu, a família viveu um período confortável, embora instável, nos EUA. Eles não falavam inglês, e Borges frequentemente precisava de intérprete para se comunicar com as autoridades migratórias. Em dezembro de 2022, segundo o ICE, o casal recebeu uma ordem de deportação, e Borges passou a usar tornozeleira eletrônica. Em março de 2024, os documentos brasileiros da família foram confiscados, segundo Gonçalves.
“Os documentos de viagem são solicitados para facilitar o cumprimento das ordens” afirmou o porta-voz do ICE, Nestor Yglesias.
Só depois Borges percebeu o que isso significava: sem os documentos, não podiam provar sua nacionalidade e, assim, não conseguiram registrar Manu como cidadã brasileira no consulado local. Ela seria apenas americana.
“Fomos pegos dormindo”, disse Gonçalves.
Em fevereiro deste ano, Borges contou que foi convocado ao escritório do ICE em Miramar, na Flórida, e orientado a levar toda a família.
Segundo ele, seu advogado havia entrado com um pedido judicial para suspender a deportação, citando a cidadania americana da filha. Mas, prevendo que talvez fossem deportados de qualquer maneira, Gonçalves e Borges arrumaram as malas e prepararam os filhos.
Encontraram-se com sua intérprete, Dani Ribeiro, mas ela foi barrada pelos agentes do ICE, que afirmaram que o órgão forneceria seus próprios intérpretes. “Eu não confiava nessas pessoas” disse Ribeiro. “Queria entrar.”
Gonçalves disse que um intérprete foi colocado ao telefone e lhes informou que o pedido de suspensão havia sido negado. O casal relatou ter recebido formulários em inglês para assinar. Sem saber o que diziam, assinaram mesmo assim.
Depois de receberem de volta os documentos brasileiros, a família foi levada para a Carolina do Norte, depois Louisiana e, por fim, ao Brasil. O advogado da família, na Flórida, disse ter ficado indignado ao saber do ocorrido.
O governo dos EUA está deportando sua própria cidadã, disse o advogado, que pediu anonimato por medo de retaliação.
‘Ela não é brasileira’
As autoridades brasileiras ficaram confusas. Para Edilson Santana, defensor público no Ceará, havia apenas duas possibilidades: ou o governo americano estava argumentando que Manu não era cidadã americana, apesar dos documentos, ou os EUA estavam violando suas próprias leis. “Foi uma deportação de uma nacional.”
Segundo Santana, o status migratório de Manu não é fácil de resolver. O Brasil tem dois mecanismos principais de concessão de cidadania: o nascimento em território nacional e o registro em consulado para filhos de brasileiros nascidos no exterior. Manu não se enquadra em nenhum dos dois. As autoridades tentam agora criar uma terceira via: torná-la uma “cidadã temporária” até que complete 18 anos.
Mas tudo isso levará tempo. Por ora, ele afirmou: “Ela não é brasileira. É uma turista.”
Gonçalves tentava afastar esses pensamentos enquanto sentava Manu em frente ao iPad numa manhã recente e colocava um de seus desenhos preferidos, BabyBus. Disse que queria que a filha continuasse aprendendo inglês.
Hoje em dia, a maior parte do tempo é só das duas. Borges estava trabalhando do outro lado do país. O filho mais velho estava na escola. “Ela vê outras crianças muito raramente” contou a mãe.
Então, decidiu levar a filha para brincar. Disse a Manu que era hora de visitar os avós, que moram ao lado, onde havia uma cama elástica. Manu calçou seus Crocs gritando “shoes” e correu para a porta.
Ao lado, Gonçalves colocou a filha na cama elástica. Depois, ficou ali parada, observando a menina saltar para cima e para baixo, para cima e para baixo, sua garotinha americana rindo sob a última luz do dia.