Segundo o relatório “Os Invasores 2023”, do projeto de Olho nos Ruralistas, a fazenda São Gabriel tem 1.145 dos seus 1.493 hectares sobrepostos à TI Tremembé de Almofala.

A empresa entrou em recuperação judicial este ano, o que faz a Funai e indígenas temerem que a área de litígio seja dada como garantia para pagamento de dívidas.
O processo judicial está na Justiça desde 1993 e agora está no TRF-5 (Tribunal Regional Federal da 5ª Região) em grau de recurso da empresa. O que vigora hoje é uma decisão que suspendeu a sentença a favor dos Tremembé até que a corte julgue o recurso da empresa (entenda mais abaixo).
Em março deste ano, a Ducoco entrou em recuperação judicial com uma dívida estimada de R$ 670 milhões. A empresa foi fundada em 1982 por uma família de banqueiros do Ceará e, em 2020, foi vendida para a Malibu Holding.
Invasão antiga
Fernando Marciano Santos, conhecido como Fernando Tremembé, é uma liderança do povo e afirma que a luta pelo território é antigo e gera tensão constante do povo. “Desde 1978, com a chegada de uma empresa Ducoco, ela tomou conta de uma parte desse território”, alega.

Do outro lado da TI, também há ocupação de posseiros. “Enfrentamos muitas batalhas, muitas perseguições, muitas ameaças de mortes. Inclusive, tivemos duas lideranças que foram mortos justamente pela defesa desse território”, alega.
Ele diz que, com a indefinição, as famílias ocupam um espaço pequeno de terra, o que gera dificuldades na agricultura, por exemplo. “Só temos mesmo a nossa moradia. E a população só tende a crescer”, afirma.
A coluna tentou contato durante a semana com a Ducoco, mas o e-mail informado da assessoria de imprensa estava desatualizado. A reportagem enviou então questionamento pelo formulário do site, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto, e a matéria será atualizada em caso de resposta.
Histórico na justiça
O litígio na justiça começou em 1993, quando a Ducoco ajuizou a ação para anular o processo administrativo de demarcação. A empresa sustenta na ação que a fazenda não é habitada por indígenas. O argumento seria de que a proteção jurídica às terras indígenas depende da chamada “posse permanente e imemorial”, o que, segundo ela, não se aplica ao caso.
Na Justiça, a empresa diz que o processo administrativo foi nulo por dois motivos principais:
- Falta de capacidade técnica do grupo gestor, que incluía pessoas de fora da Funai.
- Ausência de delimitação da área supostamente indígena por um engenheiro agrimensor.
- Além disso, cita que a perda da área resultaria em prejuízos econômicos e de empregos da área ocupada.
Funai rebate
O UOL teve acesso à nota técnica da Funai, de 10 de abril de 2025, que foi enviada ao TRF-5 no processo. Segundo o órgão, não há dúvida de que há uma ocupação histórica tradicional indígena na área da fazenda. Um primeiro registro foi feito pela Funai ainda em 1960, o que “demonstra características da cultura material que apontam para uma continuidade histórica”.
No caso dos Tremembé, a posse da terra é ratificada em documentos históricos, que a Funai apresenta no processo e que atestam a doação da área. São eles:
- Carta de Doação de Sesmaria aos índios do Jaguaribe em 1699.
- O relato do aldeamento dos Tremembés em Almofala feito pelo padre José Bezerra de Morais em 1750.
- Os títulos de terra em nome dos Tremembé existem desde 1904 e 1918, registrados em cartório. O de 1918 é referenciado como a base da proposta de demarcação.
- Uma doação do terreno pelo “quadrilátero encantado” de Nossa Senhora de Lourdes aos Tremembé de Almofala registrada em março de 1907.

Segundo o documento, a partir da década de 1970, a terra começou a sofrer com invasões de não-indígenas e fazendeiros, período que marca uma intensificação dos conflitos e da resistência indígena.
Um laudo antropológico judicial aponta que houve deslocamentos forçados de grupos entre 1987 e 1988, especialmente ligados à venda da fazenda São Gabriel e à implantação de cultivos como coco e atividades de pecuária. Famílias foram obrigadas a construir casas em condições precárias à margem do rio Pirangi.
Na ação, há um parecer do MPF (Ministério Público Federal) pedindo a improcedência dos pedidos da Ducoco, afirmando que o laudo comprovou a ocupação tradicional e citando que a área é imprescindível para a sobrevivência física e cultural do povo Tremembé.
A perícia também demonstrou que a fazenda apresenta “inconsistências gritantes” no registro imobiliário, com memoriais descritivos que divergem e não permitem delimitar o perímetro do imóvel com exatidão.
Segundo o documento, mapas elaborados a partir do registro de 1857, e contrastados com projeções da fazenda São Gabriel, indicaram que parte da está localizada dentro da terra indígena. O laudo então descreve como “violência” os processos sofridos pelos Tremembé, incluindo a expulsão de famílias da Tapera pela Ducoco em 1980.
Outro ponto que a Funai cita na nota é que na fazenda “não há funcionamento do empreendimento agrícola no local há alguns anos”, e cita que ela tem “sido utilizada para o pastoreio de gado, atividade a qual a Ducoco não possui autorização para desenvolver”.

Decisões
Em 8 de fevereiro de 2023, após 30 anos de processo, a 27ª Vara da Seção Judiciária do Ceará de Itapipoca deu sentença negando o pedido da Ducoco e reconhecendo a regularidade do processo administrativo da Funai e a ocupação tradicional dos Tremembés de Almofala.
Insatisfeita, a Ducoco procurou o TRF-5 e pediu a reversão e, preliminarmente, uma liminar para ter um efeito suspensivo da decisão para evitar a perda imediatada da posse.
Nesse recurso, a empresa alegou que a produção de cocos gera é “objeto de financiamento estatal e comprometimento de estrutura, material humano e um conjunto de empregados que trabalham diretamente na produção”.
O desembargador e relator Frederico Wildson da Silva Dantas acolheu, em 30 de março de 2024, o pedido imediato e suspendeu os efeitos da sentença em primeiro grau até o julgamento do recurso pela 7ª Turma —que ainda não tem data para ocorrer. Desde 1º de abril o processo apresenta-se concluso para decisão.
Diante das dificuldades financeiras que levaram a empresa à recuperação judicial, a Funai pede que o TRF-5 acelere o processo e marque o julgamento o quanto antes.
“O mais coerente constitucional e legalmente seria viabilizar o andamento regular do processo de demarcação para, uma vez constatadas as benfeitorias eventualmente erigidas de boa-fé pela empresa, as mesmas serem pagas devidamente em dinheiro, reduzindo e amortizando dívidas, inclusive, de natureza trabalhista que a empresa possui”, diz.
Por outro lado, tememos que a paralisação, mais uma vez, do processo de demarcação que já se arrasta há quase 40 anos possibilite, no atual cenário, que o imóvel da Fazenda São Gabriel seja dado em garantia para amortizar dívidas ou mesmo vendido a terceiros, implicando em grave alteração no quadro fático.
Funai
Reportagem
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