Em um sintoma do vale tudo dos bancos pelo crédito consignado, o Banco Central identificou mais de 28 mil casos de clientes que, entre 2024 e março deste ano, tiveram a portabilidade travada ao tentar levar seus empréstimos para outras instituições financeiras.
Só no primeiro trimestre de 2025, já há 3.121 denúncias confirmadas de pedidos de migração que foram inviabilizados por diferentes razões, segundo dados do ranking de reclamações do BC.
Esse tipo de queixa é considerada procedente quando fica comprovado que o banco não fornece informações essenciais para a realização da portabilidade, como não informar o saldo devedor, ou alega problemas para fazer a transferência do dinheiro.
As tentativas irregulares de impedir que o cliente migre o consignado para outro banco foram a principal fonte de reclamações ao BC no ano passado, em meio à briga generalizada no setor para capturar e manter clientes.
Esse interesse recai principalmente sobre os aposentados elegíveis ao consignado INSS, o tipo de empréstimo mais cobiçado pelos bancos pelo fato de o benefício, que é a garantia de pagamento, ser vitalício.
O aposentado Roberto, 62, que preferiu não informar seu nome completo para não ser identificado, é um exemplo de como funciona esse assédio. Ele contou à reportagem que ao longo dos últimos sete anos acumulou oito consignados com diferentes bancos, e dívidas somando R$ 70 mil.
Hoje, voltou a trabalhar como ajudante de logística para conseguir pagar as contas. “Os bancos sempre ficam em cima oferecendo crédito. Em 2018, eu peguei o primeiro empréstimo para fazer uma reforma, e fui contratando mais. Hoje quase metade do meu salário vai para pagar consignado”, diz.
Ele afirma que até hoje é procurado por bancos. “Eles ligam e dizem que têm um valor liberado para mim, sabem quais empréstimos eu já tenho e quais os juros, e oferecem portabilidade a juros mais baixos.”
Apesar de a portabilidade de crédito ter sido criada pelo Banco Central em 2013 como um caminho para aumentar a concorrência entre bancos, no caso do consignado ela acaba sendo uma armadilha para um endividamento ainda maior dos aposentados, diz Ione Amorim, consultora de serviços financeiros do Idec (Instituto de Defesa de Consumidores) e autora de uma série de estudos sobre o tema.
Na prática, diz Amorim, o aposentado é estimulado pelo novo banco a contratar mais empréstimos a prazos mais longos. “O verdadeiro objetivo é capturar esse cliente e depois de seis meses, um ano, refinanciar esse crédito, trazer a valor presente e recalcular o valor máximo que pode ser tomado na margem consignável.”
Ela explica que essa margem, que é o percentual máximo permitido para descontos do consignado, foi sendo ampliada: hoje, entre o desconto direto, o cartão de crédito e o cartão de benefícios, pode representar até 45% da renda mensal. O prazo de pagamento também foi sendo elevado até chegar aos atuais 96 meses, ou oito anos.
A especialista defende limites mais baixos para margem e prazo e punições mais rígidas, além de uma atuação mais firme do Banco Central, já que a oferta agressiva de consignado possui um impacto profundo na vida financeira de idosos.
Para Rafael Schiozer, professor titular de Finanças da FGV-EAESP, o consignado pode se tornar um problema ao comprometer boa parte da renda do aposentado. “Tem um lado bom, pois é um empréstimo a taxas mais baixas, mas é oferecido de uma forma um tanto agressiva e até predatória em alguns casos, em que o aposentado mal sabe direito o que está fazendo”, diz.
Procurado pela reportagem para comentar os dados, o Banco Central declarou, através de sua assessoria de imprensa, que o crédito consignado é prioridade nas suas supervisões e que estão em andamento inspeções para fiscalização em instituições financeiras que cobrem cerca de 86% da carteira.
O órgão regulador disse ainda que suas equipes de monitoramento de reclamações mantém “interlocução permanente com as ouvidorias das instituições supervisionadas” com o objetivo de corrigir as irregularidades.
“A proteção do consumidor financeiro nas operações de crédito consignado é assunto prioritário na supervisão de conduta do Banco Central, com trabalhos recorrentes abrangendo os principais agentes desse mercado”, afirmou o BC em nota. “As ações de supervisão envolvem desde a concepção do produto até as renegociações, com especial atenção às condições ofertadas para portabilidade de crédito e à legitimidade e integridade dessas operações.”
O BC ainda esclareceu que os dados não permitem a comparação com o período anterior ao segundo trimestre de 2024, já que a metodologia da pesquisa foi alterada no início do ano passado.
Outro canal de reclamações do poder público, o consumidor.gov, registrou 20.650 denúncias envolvendo o crédito consignado INSS no primeiro quadrimestre deste ano, uma alta de 46% em relação ao mesmo período do ano passado, com a cobrança por serviços não solicitados liderando o ranking.
Os dados do Banco Central mostram que o PicPay lidera a lista dos bancos que mais travaram a portabilidade neste ano, segundo o ranking de reclamações do BC, enquanto que no ano passado o banco Mercantil liderou o ranking.
Procurado pela reportagem, o PicPay afirmou que mantém um compromisso com a liberdade de escolha dos clientes e que apoia inovações como a portabilidade de crédito e de salário. Disse ainda que o banco adota “múltiplas camadas de proteção para identificar tentativas de portabilidade de crédito consignado não solicitadas pelos próprios clientes e sim por terceiros”.
Já o Banco Mercantil afirmou que em 2024 atuou para reduzir o volume de reclamações. “Os resultados já se refletem no ranking de 2025”, disse.
A Febraban (Federação Brasileira de Bancos) afirmou que monitora as reclamações em torno do consignado e que, quando se exclui as oscilações mensais, não há nenhum movimento fora do comum no comportamento das queixas. “Não enxergamos nada fora do padrão neste momento”, afirma Amaury Oliva, diretor executivo de Cidadania Financeira e Relações com o Consumidor da Febraban.
Sobre os dados da plataforma consumidor.gov, que mostram alta de 46% nas reclamações sobre conginado CLT na comparação com 2024, a entidade diz que o dado é pouco representativo na comparação com os mais de 6 milhões de operações desse tipo de crédito no período.
“O número de queixas representa 0,05% do total de empréstimos no primeiro trimestre de 2025”, diz Oliva.