Quando se buscam no presente os ecos políticos, sociais ou ideológicos de um intelectual do passado que não seja branco, é comum que se voltem os olhos primeiramente (quando não somente) à comunidade da qual ele saiu.
“O que há de Malcolm X no movimento negro hoje?” seria a pergunta clichê sobre o agora centenário líder negro. Que seja clichê, até tudo bem. Mais grave é o fato de que esse enquadramento automaticamente restringe a produção política das minorias à estreita moldura da identidade.
Malcolm X foi muito além de seu berço político, o nacionalismo negro. Desde que deixou a cadeia em 1952 como o principal orador da Nação do Islã, ele nunca deixou suas ideias empoeirarem.
Se, mimetizando o líder de sua organização religiosa, Elijah Muhammad, iniciou a vida pública pregando a criação de um Estado separatista negro dentro dos Estados Unidos, em seus últimos meses de vida, ele defendia a igualdade radical, independentemente de raça.
Como tudo em seu caminho filosófico, esse percurso do messianismo ao flerte com o socialismo não significou um descarte de suas ideias prévias, mas uma evolução estratégica.
“O fardo de ter que defender alguma posição [separatista] nunca deve ser colocado sobre o negro, porque foi o branco, coletivamente, que se mostrou hostil à integração. (…) Eu, como homem negro, (…) não preciso me defender de nenhuma posição que eu tenha tido anteriormente, pois ainda se trata de uma reação à sociedade, uma reação produzida pela sociedade; acho que quem deve ser atacada é a sociedade que produziu isso”.
Em sua última entrevista, publicada quatro dias depois de seu assassinato, em 21 de fevereiro de 1965, Malcolm defendia que tanto faz a aparência ou origem de uma pessoa: “Minha mente está aberta para qualquer pessoa que nos ajude a tirar o monstro de cima de nossas costas”.
O monstro, na visão de mundo do Malcolm maduro, tinha nome e sobrenome. Depois de regressar de uma viagem que incluiu uma peregrinação a Meca, ele tirou da mira o “demônio branco” de outrora e a redirecionou ao capitalismo e à constelação de “ismos” em que ela se ampara: o colonialismo, o racismo, o imperialismo, o dolarismo.
E passou a defender que todo negro dos Estados Unidos —”especialmente aqueles que se dizem líderes”— deveria entender a “conexão direta entre a luta dos afro-americanos e a luta dos povos ao redor do mundo”. Foi nessa linha que produziu seu último registro escrito, talvez a melhor pista para entender aonde sua política o levaria.
O texto intitulado “A lógica sionista” saiu em 17 de setembro de 1964 na The Egyptian Gazette, 12 dias depois de o líder negro ter visitado o campo de refugiados de Khan Younis que, neste exato momento, está sendo aplainado por bombardeios israelenses.
“Os exércitos sionistas que hoje ocupam a Palestina”, escreveu, “citam seus antigos profetas judeus, segundo os quais ‘nos últimos dias desse mundo’, seu Deus enviará um ‘messias’ para levá-los a sua terra prometida, onde montariam seu próprio governo ‘divino’ para ‘governar todas as outras nações com punho de ferro’. Se os sionistas israelenses creem que sua atual ocupação da Palestina árabe é o cumprimento das predições feitas por seus profetas judeus, então eles acreditam religiosamente que Israel deve cumprir sua missão divina de subjugar todas as outras nações com punho de ferro, o que significa só uma forma diferente de governo opressivo, ainda mais consolidado que aquele das potências coloniais europeias”.
Cornel West veria “fogo profético” nesse texto. É tal coerência intelectual que permite profetizar que, se estivesse em São Paulo na semana passada, Malcolm X estaria com os moradores da Favela do Moinho.
Se viajasse ao Sahel, apertaria a mão do presidente revolucionário do Burkina Faso, Ibrahim Traoré, como fez com o pan-arabista Gamal Abdel Nasser, em 1964. E, seguramente, enfrentaria com todas as forças o genocídio israelense em Gaza. É entre os oprimidos e explorados, de qualquer cor, que sobrevive o legado de Malcolm X.