Alguém aí ficou com a impressão de que Leão 13 era um comunista perigoso, desses que seriam atacados por bolsonaristas nas redes sociais? Então convém ler este outro trecho:
“Os socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens de um indivíduo qualquer devem ser comuns a todos e que a sua administração deve voltar para os Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário: é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social.”
Pronto! A Igreja que atacava o liberalismo que condenava milhões à miséria via no socialismo um risco ainda maior porque, entende-se lendo toda a encíclica, que, além de não cumprir os desígnios que anunciava, subvertia a ordem social. Para Leão 13, a propriedade era um direito natural. Mas prestem atenção:
“A força destes raciocínios é duma evidência tal, que chegamos a admirar como certos partidários de velhas opiniões podem ainda contradizê-los, concedendo sem dúvida ao homem particular o uso do solo e os frutos dos campos, mas recusando-lhe o direito de possuir, na qualidade de proprietário, esse solo em que edificou, a porção da terra que cultivou. Não veem, pois, que despojam, assim, esse homem do fruto do seu trabalho; porque, afinal, esse campo amanhado com arte pela mão do cultivador mudou completamente de natureza: era selvagem, ei-lo arroteado; de infecundo, tornou-se fértil; o que o tornou melhor, está inerente ao solo e confunde-se de tal forma com ele, que em grande parte seria impossível separá-lo. Suportaria a justiça que um estranho viesse então a atribuir-se esta terra banhada pelo suor de quem a cultivou? Da mesma forma que o efeito segue a causa, assim é justo que o fruto do trabalho pertença ao trabalhador.”
Ficou com a impressão de que Leão 13 era uma espécie de inspirador do MST? Calma! Ele advertia ao condenar o socialismo:
“Mas, além da injustiça do seu sistema, veem-se bem todas as suas funestas consequências, a perturbação em todas as classes da sociedade, uma odiosa e insuportável servidão para todos os cidadãos, porta aberta a todas as invejas, a todos os descontentamentos, a todas as discórdias; o talento e a habilidade privados dos seus estímulos, e, como consequência necessária, as riquezas estancadas na sua fonte; enfim, em lugar dessa igualdade tão sonhada, a igualdade na nudez, na indigência e na miséria. Por tudo o que nós acabamos de dizer, se compreende que a teoria socialista da propriedade coletiva deve absolutamente repudiar-se como prejudicial àqueles membros a que se quer socorrer, contrária aos direitos naturais dos indivíduos, como desnaturando as funções do Estado e perturbando a tranquilidade pública. Fique, pois, bem assente que o primeiro fundamento a estabelecer por todos aqueles que querem sinceramente o bem do povo é a inviolabilidade da propriedade particular.”
Leão 13 avança:
“Entre os deveres principais do patrão, é necessário colocar, em primeiro lugar, o de dar a cada um o salário que convém. Certamente, para fixar a justa medida do salário, há numerosos pontos de vista a considerar. De uma maneira geral, recordem-se o rico e o patrão de que explorar a pobreza e a miséria e especular com a indigência, são coisas igualmente reprovadas pelas leis divinas e humanas; que cometeria um crime de clamar vingança ao céu quem defraudasse a qualquer no preço dos seus labores: ‘Eis que o salário, que tendes extorquido por fraude aos vossos operários, clama contra vós: e o seu clamor subiu até aos ouvidos do Deus dos Exércitos’. Enfim, os ricos devem precaver-se religiosamente de todo ato violento, toda a fraude, toda a manobra usurária que seja de natureza a atentar contra a economia do pobre, e isto mais ainda, porque este é menos apto para defender-se, e porque os seus haveres, por serem de mínima importância, revestem um caráter mais sagrado. A obediência a estas leis — perguntamos nós — não bastaria, só de per si, para fazer cessar todo o antagonismo e suprimir-lhe as causas?“
VOLTANDO A LEÃO 14
Leão 13 via na voragem socialista, fica claro, o risco de desmantelamento da ordem social, da família e da cristandade. E chamava à responsabilidade os ricos. Um socialista poderia dizer, sem chance de errar, que aquele papa escreveu um documento abertamente contrarrevolucionário, de um anticomunismo às vezes feroz, mas acusando, ao mesmo tempo, as iniquidades que empurravam os operários para a revolução e a revolta.
Por isso, recomenda:
“Como, pois, seria desrazoável prover a uma classe de cidadãos e negligenciar outra, torna-se evidente que a autoridade pública deve também tomar as medidas necessárias para salvaguardar a salvação e os interesses da classe operária. Se ela faltar a isto, viola a estrita justiça que quer que a cada um seja dado o que lhe é devido. A esse respeito S. Tomás diz muito sabiamente: ‘Assim como a parte e o todo são em certo modo uma mesma coisa, assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a cada parte’. E por isso que, entre os graves e numerosos deveres dos governantes que querem prover, como convém, ao público, o principal dever, que domina lodos os outros, consiste em cuidar igualmente de todas as classes de cidadãos, observando rigorosamente as leis da justiça, chamada distributiva.”