Quando Ilessi escolhe batizar seu disco de “Atlântico Negro”, ela não está mirando num lugar, numa ponte, num mero espaço físico de travessia entre África e Américas. Afinal, oceano é, sobretudo, movimento. “Me mantive fiel à ideia de Paul Gilroy [sociólogo inglês que criou o conceito ‘Atlântico Negro’]. Ou seja, estou falando da cultura negra diaspórica, mas não estou pensando em origem. É mais movediço. É algo que vem de algum lugar, mas se mistura e se transforma. Não gosto de estabelecer bordas ou fronteiras”.
No disco e no show que já passou por Rio de Janeiro e São Paulo, esse território movediço se materializa num repertório que inclui Milton Nascimento, Clementina de Jesus e cantos do Negro Fugido, autopopular tradicional de Acupe, distrito de Santo Amaro da Purificação. Mas não somente: boa parte é material próprio, ou seja, músicas de Ilessi e de compositores como Marcelo Galter, Luizinho do Jêje, Iara Rennó, Sylvio Fraga e Thiago Amud.
Em “Atlântico Negro”, portanto, Ilessi aponta referências de negritude bem marcadas, o que aparece nos títulos de canções, como “Navio Negreiro”, “Oxum (Ora ie ie ie)/ Oxum (Oxum bai le ô)” ou “Omolu”. A riqueza dessas referências está em diálogo com inventividades de outras naturezas —filhas de fontes como Hermeto Pascoal e Clube da Esquina.
Nascida em Campo Grande e criada em Jacarepaguá, bairros da zona oeste do Rio de Janeiro, Ilessi cresceu com as marcas sociais de mulher, negra e suburbana. E construiu sua carreira afirmando de maneira funda essas marcas —ao mesmo tempo em que desafia as expectativas sobre elas.
Desde o início foi assim. “Meu primeiro disco, ‘Brigador’, tem dez faixas”, conta Ilessi. “Quatro são sambas. Tem baião, valsa, bolero… E sempre eu o via nas lojas na prateleira de samba. Ou seja, você vê uma cantora negra na capa de um disco e diz: samba”.
A música de Ilessi, portanto, não se rende às classificações vindas de um olhar superficial. Quem espera cacoetes vazios de afrofuturismo encontra uma estética fundamentada em vivência e reflexão —doutoranda em música na Unicamp, a Universidade Estadual de Campinas, ela desenvolve a tese “A improvisação das vozes negras diaspóricas de Clementina de Jesus e Tania Maria”.
Quem espera dela um “canto intuitivo” da negra periférica encontra a técnica apuradíssima. Quem, ao se deparar com esse refinamento, imagina um respeito à limpeza que se projeta na “grande música popular brasileira”, se depara com uma voz que desafia tudo isso com vigor punk e ética de terreiro. É rima de Elis Regina e Clementina.
Mais do que uma afirmação de raízes, a negritude da música de Ilessi se fundamenta na ideia de liberdade, como ela própria escreve na contracapa do vinil de “Atlântico Negro”: “Música negra, como nos ensina Amiri Baraka, é mais do que a música feita pelos negros, mas a música que tem em sua essência a liberdade da improvisação. Improvisação de ser, estar e agir no mundo, que nós negros, há séculos submetidos a tanta opressão, apropriação, invisibilidade, desigualdade e racismo, sabemos bem o que é”.
Em entrevista, Ilessi lança um exemplo que ilustra sua liberdade: “Tem uma música na qual faço um negócio na voz que é um efeito como se fosse um golpe de glote, um canto agudo picotado. Fiquei pensando de onde surgiu isso. Um tempo depois me lembrei de uma gravação de Yoko Ono, acho que é ‘Kiss Kiss Kiss’, na qual no final ela começa a fazer isso. Ou seja, a referência vem do lugar mais improvável”.
A sonoridade de “Atlântico Negro” é construída por Ilessi ao lado de músicos que se afinam com essa liberdade: Marcelo Galter (piano e teclados), Ldson Galter (baixo) e Reinaldo Boaventura (percussão). Igualmente em sintonia está Sylvio Fraga, que assina com Ilessi e Marcelo a direção artística do álbum — e, apenas com Marcelo, a produção musical.
Juntos, eles se lançam no groove de ancestralidade moderna e modernidade ancestral de “Cativeiro de Iaiá/ Evém o Nego Paturi”, sobre o qual a cantora explora um canto rasgado inspirado pelo de Dona Santa, responsável pelo resgate da tradição do Negro Fugido. Em “Trastevere”, de Milton e Ronaldo Bastos, interpreta com força sóbria sobre um arranjo que reinventa a dissonância do Clube da Esquina. Já “Cobra Coral”, de Marcelo Galter, é uma melodia de saltos inesperados que ela executa em vocalize que combina precisão e calor —assim como em “Seca tatu”, composição da própria cantora.
Sexto disco de Ilessi, “Atlântico negro” a firma numa cena de artistas que tem repensado a herança negra na música brasileira para além dos mitos que a cercam —e dos fetiches de identidade que dominam os dircursos no indie e no mainstream. Mais importante, tem se apropriado dessa herança para lançá-la no futuro. Nomes como Juçara Marçal, Negro Leo, Iara Rennó e Caxtrinho— todos traçando diálogos e colaborações entre si.
“Eu fui formada por um grupo que contava a minha história”, reflete a cantora. “Mas acho que a gente está numa transição pro momento em que iremos recontar essa história negra. Quem tem um olhar crítico está pensando mais nessa presença. Porque não é mais representatividade. É presença. Nós estamos presentes”.